quarta-feira, 16 de agosto de 2017

37 | Corpo de Mulher ao cimo da Rua


Alguém se esqueceu de um corpo de mulher ao cimo da rua. 

Alguém, propositadamente, deixou um tronco feminino e cor-de-rosa voltado para a rua principal, com os peitos de plástico atentos ao despertar da cidade, onde não deveriam haver peitos despertos de mulher à espreita. 

Sem braços, sem pernas, sem cabeça: tão só o caminho do pescoço ao início da coxas plásticas e cor-de-rosa, atadas com corda ao gradeamento. 

Eles olham, recapitulando. 

Elas desviam o olhar, por não ser justo. 

Não é justa a simetria ensaiada, ofensivamente perfeita nas medidas cuidadosamente calculadas para o lado esquerdo ser - impreterivelmente - igual ao direito. Não é justo que as ancas sobressaiam na medida certa-errada, como maçãs nos desenhos animados, redondas, gordas e avermelhadas, com traços curvilíneos e joviais, na sua matéria de quase-círculos matemáticos. 

Não é justa a textura. Um liso tão liso que escorre a direito as pingas da chuva, sem as votas aquele passo incerto que é escorregar num corpo real, numa pele real, com os desvios e impasses de uma estrada com História e estórias. Não é justo o cor-de-rosa. Leitoso, plástico, uniforme. Suíno. 

E não é justo porque não é real, e o que não é real nunca faz justiça à coisa representada. E elas sabem-no e não o invejam. Com mais ou menos segurança, preferem a carne irregular, assimétrica, mutável e vivida à fantasia de uma imagem que, 

injustamente, 

não as retrata. 

Por isso desviam o olhar: não por constrangimento, não porque há um par de peitos à espreita na rua principal, mas porque sabem que quem esqueceu, propositadamente, um corpo de mulher ao cimo da rua, não esqueceu, afinal, um corpo de Mulher ao cimo da rua. 

Linha 500, Aliados-Foz, 19 julho'17

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