sábado, 20 de agosto de 2016

5 | Circo de feras

Flor, 
 sou um circo por dentro.

No meu interior existe um quarto de espelhos que vão aumentando em número a cada dia que passa, aprisionando-me a uma quantidade infindável imagens de alguém que devo ser eu, mas que não reconheço inteiramente. É aterrorizador porque não posso fugir para lado algum sem me esbarrar com uma ideia de mim ainda mais bizarra e desproporcional que a anterior, como se a minha alma fosse um freak show qualquer cuja única personagem sou eu nas minhas diversas formas e feitios.
 As minhas angústias são do tamanho de elefantes adultos a fazer acrobacias perigosas, os meus medos ruidosos como palhaços histéricos em mono-ciclos  e as minhas expetativas, jovens trapezistas lançando-se lá do alto sem rede para as apanhar. Eu sou uma tenda apertadinha cheia de artistas saltitantes - que não são mais do que pedaços soltos de mim, vendedores de pipocas e algodão-doce, e um público uno, que sou eu mesma, a aplaudir com adereços luminosos a javardice que para aqui vai.
Não lamento ser um show desorganizado por dentro. Não lamento ser uma companhia andante, sempre a vadiar por terras de ninguém, nas minhas tropelias perigosas, errantes...temporárias. Não lamento não entregar os segredos da minha alma, já veterana do ilusionismo. Não lamento não ter um coração para chamar de casa, porque o meu lugar é nos caminhos e não nos destinos definitivos. Não lamento não depender, não lamento não partilhar, não lamento não-ficar.
Desculpa se isto não te comove. Desculpa se a minha alma não é um T5 com vista para o mar, onde os meus supostos planos solidamente concebidos chegam a casa cansados do trabalho mas com vontade de jogar wii com as crianças. Desculpa se a minha alma é minha, só minha e de mais ninguém, enquanto a tua não te pertence, já que a entregaste de mão beijada com promessas de amor eterno: não devemos nunca entregar-nos por inteiro, quando deixamos alguém entrar no nosso quarto de espelhos não devemos esquecer-nos de continuar lá dentro. Devemos sempre guardar um bocadinho de nós próprios para nós mesmos, como um pequeno trunfo num truque de magia. Só a ideia de me esquecer de mim mesma faz tremer as varas do meu circo interior, ameaçando desalojar as minhas manias, que sempre dormem debaixo de cobertores frios em caravanas nos descampados. Desculpa se não quero partilhar as tuas aspirações de viver feliz para sempre com um amor que de tão poderoso e imponente te esconde o rosto na curva dos planos para as férias do verão seguinte. É uma decisão tão válida quanto qualquer outra, mas não queiras impingir-ma: eu não sou talhada para futuros equilibrados, e isso não faz de mim alguém pior do que tu: talvez mais egoísta, talvez mais só, mas não pior.
Não te atrevas a julgar de novo as minhas convicções, que mesmo loucas, são minhas: a minha alma pertence-me inteiramente, e eu decido se quero pô-la a andar no trapézio.
Desculpa, mas eu sou um circo, e não lamento por isso.
florence. 

Nenhum comentário: