sábado, 20 de agosto de 2016

4 | Teoria do fim das palavras

Tu que estás a ler isto, sejas lá quem fores,

é bom que saibas que não há nada a dizer sobre coisa nenhuma. Já tudo foi dito antes de nós, já todas as palavras foram deitadas nas camas de papel, e algum escritor-leitor já as amou antes de nós, com um fulgor que nunca será o nosso, com uma paixão que nunca se abeirará da nossa, pelo simples facto de ter sido a primeira. Não há nada como roubar a primeira vez de uma palavra: conduzir a pena pela curva inocente do primeiro "a" minúsculo, traçar com violência um tracinho elegante e juvenil de um "t" nunca antes visto, formando uma palavra, e depois uma frase, e depois um texto com um tema do qual nunca antes se escreveu...consegues imaginar? Não. Nem eu. Cada palavra nossa é já gasta, cada frase é repetida ("ao expoeeeeente da loucura!") cada tema é vulgar, desnudado, experiente...cansado.
Que privilégio foi o dos poetas que chegaram aqui antes de nós, roubando a juventude das nossas palavras, que hoje mais não são do que velhas meretrizes entediadas a encostar-se às margens da folha com falta de paciência.
Tu, que estás a ler isto e eu nem sei quem és, não digas que sou pessimista. Ai "Desassossego" é uma palavra bela que nunca se cansa? É sim senhor, mas o Pessoa fodeu-a antes de ti. Lida com isso, colega. E dessa palavra passou para uma frase, e depois outra, e outra até ter um "Livro do Desassossego", que não é nosso, é dele, e nunca na vida vamos poder escrever:

"Não toquemos na vida nem com a ponta dos dedos".

Porque o Pessoa nasceu antes de nós, cresceu antes de nós, viveu antes de nós e lembrou-se, antes de nós, que a vida não deve ser tocada nem com a ponta dos dedos. Agora a frase é dele, e nós podemos até escrever:

"Não toques na vida nem com a tenaz de servir as alfaces"

que é basicamente a mesma ideia, mas vais estar a olhar para a tua frase, despida sobre a cama de papel, e vais sempre saber que a frase que acabaste de - não vou usar a palavra de novo, por isso pensa num sinónimo - não está nem perto de ser a frase do filho da mãe do Fernando, que além de ter nascido primeiro, tinha de ser um génio. Não foste o primeiro amor de um livro como o "Livro do Desassossego". Nem dos "Maias", nem tão pouco do "Crepúsculo", vê lá tu. Não vais ser o primeiro a escrever sobre o amor, ou o desamor, ou a saudade, ou a inquietação... já tudo foi escrito, já toda a matéria de verso foi virada e revirada do avesso, uma e outra vez, por milhares de homens e mulheres que usaram e abusaram das palavras, das frases, das ideias, até só nos restar a nós reescrever o que já antes alguém escreveu.
Somos filhos do plágio não-intencional, das coisas já feitas, das ideias reproduzidas, a revisão, da desnovidade...PAROU TUDO. Desnovidade é uma palavra por inventar... 344 resultados no google em 0.25 segundos. Vês? Já alguém pensou nisso antes de mim. Vai ser isto até ao fim dos nossos dias, amigo, e pior que nós, estarão os nossos filhos e os deles, e os depois deles, e por aí adiante até ao fim da escrita, das ideias e das palavras.

Mas sabes o que é engraçado? Eu estou a ler o "Livro do Desassossego" pela 3ª vez, e embora as palavras sejam as mesmas, as frases permaneçam iguais, e as ideias não se tenham movido nem um pouco, é como se estivesse a ler um livro novo: o livro é o mesmo, eu é que não.
Calma, jovem! Talvez não estejamos assim tão perdidos, na verdade... Por mais que as ideias e as palavras sejam as mesmas, variando apenas na forma como são apresentadas, elas serão sempre escritas e lidas de forma diferente. 

Afinal de contas, talvez ainda haja muito para escrever.... mas por mim chega por hoje.

P.s. De qualquer das formas, continuo a ter uma inveja do tamanho do mundo de certos escritores... 
Não seria um máximo se tivesse sido eu a escrever a frase: 

"“My thoughts are stars I cannot fathom into constellations."?

Raios te partam por teres chegado primeiro, John.
Raios te partam.
A invejosa, 
Florence.

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