sábado, 20 de agosto de 2016

28 | Credo

Ex mo Senhor S,
Oxalá que lhe caia uma mosca no copo sem dar por ela, que tropece ao benzer-se na missa de domingo e entorne o copo do vinho no altar, que lhe caia o monóculo numa poça de água durante um passeio com a madame e, quando se baixar para o apanhar, oxalá lhe rasgue o fato mesmo naquele sítio a sul onde as costas mudam de nome. 
Só não desejo que lhe caia um piano em cima por respeito. 

Ao piano. 

Não são ciúmes da catraia, entenda-se. Já lhe disse mais de mil vezes que não me importa a mim dividir a óstea conquanto a parte maior venha para mim.  Não me aquece nem me arrefece que ande com a moreninha de braço dado pela praça, que a exiba como uma pomba branca, com as patitas bem presas ao braço direito, não vá o dono trocá-la por uma caturra de poupa em riste.
Mas agora, seu trapaceiro, que me venha dizer que finalmente se sente amado, ai isso não! 

Eu, que me prostrei diante si com a devoção doentia de uma crente, que o adorei com o fervor de quem adora um deus, que esperei pacientemente, contida como se de tempo de quaresma se tratasse, gostando-lhe em silêncio como quem ora, para não o assustar, está certo, julgando que a sua fé era a do prazer sem amor e não o contrário. 
E eu nada dizia, sabendo-o assim insensível e descrente dos cânticos do coração, porque a bom rigor ainda pensava ser capaz de convertê-lo à minha doutrina, esperando um dia celebrar consigo o 7º sacramento. 
Lá julgava eu que além de mim, andava mais alguém a espalhar a boa nova! 
E você, seu imbecil, passava diante mim com uma indiferença quase felina, com uma altivez errante e desprendida, com desprezo de quem naquela parte de ajoelhar na igreja, não reza, apenas fecha os olhos e medita no jantar que se lhe segue; descartando o meu amor sem remorsos, sem culpa, sem pena.

E agora, de moreninha debaixo do braço, diz-se sentir amado como nunca antes. Que belo judas que me saíste! Que grandeza é a do seu amor que oculta a pureza do meu?! Haverá na sua devoção mais fervor do que na minha?! Serão as preces dela mais esperançosas? As suas certezas mais inabaláveis? A crença da sua possível absolvição, meu amor, mais vincada do que a minha?! 
Está claro que não, Senhor S.

A beatinha da sua malfada alma (atulhada com tanto pecado vil que já salta pelos olhos), a sua moreninha cândida que segundo sei o faz sentir amado, ajoelha num altar que não faz as graças da pureza do meu sentimento, e juro sobre a minha bíblia que não mais é do que o livro do dessassossego, que quando se cansar do sermão, há de vir pregar para a minha paróquia...
Ah, meu amor, hei de correr consigo com a rapidez que o diabo foge à cruz. 

Da furiosa,
Cereja. 

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