sábado, 20 de agosto de 2016

26 | Uma breve e desencantada estória de não-amor



Numa terra junto ao mar 
nasceu um dia uma criança
que contra a vontade do pai
se chamou Conceição Maria Esperança. 

Esperança era o que não tinha, 
na sua desvairada filha, 
pois na cabeça da jovenzinha
não cabia mais que uma ervilha. 

Desde cedo foi esquecendo
onde deixava os brinquedinhos 
distraída sem remendo,
perdia-os pelos caminhos. 

Na escola aprendeu a ler
e a responder à tabuada
mas perdia as letras sem querer
e ninguém percebia nada! 

"Era uma vez a princesa -arlota" 
começava a ler Conceição, 
no meio da geral risota,
procura o "c" pelo chão. 

Nas contas de multiplicar,
esquecia sempre a cruzinha,
a professora farta de explicar: 
"Vais para o castigo sozinha!"


Assim se passaram os anos
e Conceição cada vez mais esquecia,
mas isso não estragava os planos
de vir a trabalhar numa confeitaria!

No início bem custou
pois esquecia as medidas,
mas logo um esquema engendrou
de as cozer nas saias compridas!


Assim, ao redor das saias
trazia receitas de doces sem fim
e também excertos dos Maias
para ler quando fosse ao jardim. 

Conceição era agora uma jovem senhora,
e seu pai estava preocupado
não é que nunca mais chegava a hora 
de ela ter uma namorado?!

Numa terra tão pequena
só se queria ver casamento
e a filha da dona Helena
já ia no terceiro rebento!

O pai e mãe de Conceição
temendo uma filha solteira,
quiseram abrir-lhe o coração
mesmo à sua maneira. 

Durante meses naquela casa
desfilaram bigodes e barbas,
todos a arrastar a asa
à bonita loirinha com sardas. 

Fartos da situação
foram com ela à bruxa Orácia:
"Vossa filha perdeu o coração,
não o vejo na caixa toráxica!"

O pai, fora de si,
culpava a chorosa Conceição: 
"Sua tonta, que vai ser de ti, 
ninguém ama sem coração!"

Conceição chorava sem para,
mas não pela falta do dito cujo,
porque não se pode lamentar
a falta de algo que nunca teve uso! 

Esperara sempre um grande amor,
mas nunca com muita urgência
julgava que a longa demora
se devia aos padrões de exigência. 

Mas agora sem coração, 
que iria ela fazer? 
Fingir ter afeição,
ou ficar só até morrer? 

Tristemente olhava as amigas,
com inveja e admiração, 
de amor sofrem as raparigas
de não-amor sofre Conceição. 

Procurou por toda a parte, 
debaixo do chão e no telhado,
até no meio da tarte 
(não fosse o coração ter caído)
dentro do preparado!


Nisto aparece a bruxa à porta,
Dizendo ter encontrado o coração: 
"Reconheci-o pela aorta, 
tem-no o menino Simão!"


Simão era filósofo,
cheio de dúvidas e interrogações,
foi a filosofar no supermercado 
que achou o segundo dos seus corações.


Era como um nariz de palhaço,
mas maior e palpitante, 
aconchegou-o no regaço 
e foi para casa radiante. 

A jovem sua noiva já o esperava 
com um prato de lulas e puré de batata,
mas o que ela não contava,
é que em vez de com Simão,
fosse jantar com uma Lapa! 

Nem para lavar os tachos 
 ávido amante a largava, 
prendia-lhe os cachos 
e dizia que a amava. 

No início gostava a amada 
de toda essa atenção,
mas começou a ficar cansada 
de tanta adoração. 

Sem mais aguentar, 
fugiu numa tarde abafada,
deixado o Simão a chorar 
a sua sorte malfadada. 

Se um coração partido
causa dor e faz chorar,
dois corações juntinhos 
doem a dobrar!

Foi assim triste e desamparado,
que o achou Conceição: 
"Sei que achado que não é roubado, 
mas quero de volta o coração!"

Mas já era tarde demais
para inverter a situação,
pois Simão descobrira o que fazer
com dupla dor de coração.

Se alegria não faz poesia,
fazem-na certamente as dores,
Simão poemas escrevia
todos sobre os seus amores.

Se o excesso de amor
é motivo de mágoa inspiradora,
também a ausência dele
fez de Conceição escritora!


Assim Simão foi infeliz no amor
e tal como ele, Conceição,
mas vale mais um poema,
do que uma vulgar afeição!

E chegamos pois ao fim, 
de uma história desencantada, 
para que não te aconteça assim, 
fecha teu coração numa carta lacrada!



Um conto (não como breve como o título faz crer) de

Emily Words.

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