sábado, 20 de agosto de 2016

20 | Ao Esteves. O Cardoso

O amor não é fodido, ó Esteves.*

Julguei, durante mais tempo que o necessário, que as melhores histórias eram aquelas com um travo fatalista, aquelas que implicassem as mais duras cruzadas por caminhos perigosos da consciência, incursões aventureiras e irrefletidas por lugares evitados por quase todos, mas tão apetecíveis para mim como se de guloseimas se tratassem. 
Alimentei-me do que não podia ser. 
Se era impossível, logo eu me aproximava com aquela curiosidade quase infantil, sentando-me à porta com a merenda.

Eu sou assim, ó Esteves, de malas e bagagens à porta do que não é seguro. 

Acampei junto de amores improváveis, e fiz deles o meu único lar. 
Vesti-me desses amores da cabeça aos pés, bebi-lhes os gestos, as palavras e as manias, até que não fosse mais do que o reflexo daquilo que só eu via. 

Meti na cabeça, ó Esteves, que o amor era mais bonito quando era triste. 
Como o fado. 

Sentava-me à janela dos amores lunares, com as suas palavras feitas de chuva e noite, e esperava. Adormecia, por vezes, mas logo acordava disposta a dedicar-me ainda mais à tarefa árdua de me perder mais de mim por outrem. 
E era tão fácil, Esteves, tornar-me a sombra de alguém difícil. 
Alguém fodido, Esteves. 
Dizem que é poético. 

O amor só era lindo enchesse a alma, 
E a pele, 
E os ossos. 
Se preenchesse tudo de forma sufocante, quase dolorosa. 
Infinita.

Mas eis uma lição, ó Esteves: o amor não preenche coisa nenhuma.
Completa. 
(Deixa espaço para uma coisinha simples chamada "eu".)

Não tem de ser complexo: pode ser só fácil como estar por perto, bonito como descobrir uma coisa nova na própria cidade, desafiante como uma aprendizagem.
Às vezes o amor é só rotina, e ainda assim muda todos os dias.

O amor, ó Esteves, é quando tu não precisas de escrever sobre isso.
É a melhor forma de ser poesia.


Mary J. 


* "O amor é Fodido", Miguel Esteves Cardoso.

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