Pensei que talvez deus - o da letra pequena, perdoem-me os fiéis, que a minha fé é a das Palavras e dos Pássaros (especialmente os de papel) - me tivesse feito assim:
como uma reta finita.
Nesse dia, achei que começava na ponta do meu cabelo mais comprido e terminava mesmo junto do dedo gordinho do pé direito.
Porquê o direito e não o esquerdo? - Perguntas tu, que falas sempre com a boca cheia de perguntas.
Porque as coisas só se endireitam no final, não é? Então, pela lógica, o direito é o fim.
Se virarmos em todas as ruas direitas, havemos de chegar ao fim do mundo.
(E o meu fim do mundo foste tu.)
Mas voltando ao dia em que eu achei que tinha fim.
Eu pensei, nesse dia, que toda a minha mania de que tenho razão, toda a minha tendência de começar a chorar por tudo e por nada, todo o meu medo do escuro, toda a pizza que comi, todas as teorias que aprendi, todos os livros que andei a ler...acabassem no dedo gordo do pé.
Imagine-se, as minhas lágrimas, junto com os versos do Pessoa, a navegar algures dentro de mim mas só até à ponta do pé direito, como uma daquelas garrafas de vidro com barcos lá dentro.
Achei, imagine-se, que o chão não era eu.
Achei que a chuva que caia metros adiante não tinha nada a ver comigo, e que a música que tocava no segundo andar de um prédio qualquer não ia, certamente, fazer parte do meu segmento de 1 metro e 64 de existência.
Repara, nesse dia, eu achava que tinha 1 metro e 64.
E depois apareceste tu.
E eu achei que afinal deus me tivesse feito assim:
Nesse dia, pensei que tinha 3 metros e 47 centímetros.
(Antes que perguntes, eu fui fazer a conta à máquina. Cá dentro ou cabem palavras ou cabem números, tá? Não vamos cá juntar alhos com bugalhos, agora senta-te e ouve.)
Um dia achei que acabava na ponta dos pés...dos teus pés.
Pensei que talvez a minha linha reta afinal fosse um emaranhado de linhas curvas e entrelaçadas que terminassem não em mim, mas em ti. As minhas palavras, os meus anseios, as minhas vontades prolongavam-se matematicamente até ti, até ao teu cabelo mais comprido e até ao teu pé direito, finito, onde se misturavam desorganizadamente com as tuas palavras, os teus anseios e as tuas vontades.
Achei que afinal talvez o chão fosse eu, mas só até onde o pisasses.
Talvez a chuva fosse eu, se te molhasse o casaco.
Talvez a música fosse eu, se a ouvisses.
Nesse dia, quase cheguei a achar que eu podia bem ser tu, simples assim. Talvez eu nem sequer existisse e fosse só uma sombra das tuas linhas.
Mas depois tu desapareceste, e ao início eu pensei "olha, bonito, afinal deus fez-me assim:"
a começar e a acabar em mim mesma,
mas tão pequenina e enrolada que tampouco chego aos pés como antes.
Mas deus não fez coisa nenhuma: no máximo fez poemas, que é a única oração que conheço.
Então, um dia, eu decidi que não queria ter fim.
Sim, ouviste bem, assim mesmo:
Eu quero fazer das minhas linhas finitas uma ponte para lado nenhum.
Hoje,
isto sou eu.
Florence.
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