sábado, 20 de agosto de 2016

11 | Nem sei que nome dar a isto

 Houston,
Já não partilhamos a culpa que afinal nunca foi dos pássaros. 
Tenho uma vaidade orgulhosa no que não me pertence: gosto de me estender no espaço que não é meu e tomá-lo por uns momentos, só o suficiente para aprisionar o que fica quando me vou. Sou má, e por isso,  enquanto pássaro, só poderia ser um corvo. Talvez isso justifique o medo irracional que tenho deles, já que não há nada que tema mais do que a mim mesma. E a si, que é corvo também. 
Os corvos não se domesticam, e com essa ideia na mente deixo-me apanhar nas gaiolas abertas propósito: sei, com aquele saber amargo dos pássaros, que a armadilha não é para mim, mas para quem a monta. Aprendi recentemente que nada nos pertence - como diz o meu homónimo, nem os pais, nem os filhos, nem os amores - e muito menos os pássaros, e por isso quem constrói gaiolas para guardar afeições é sempre quem sai a perder. Ou a prender, que vai dar ao mesmo.

Há qualquer coisa de egoísta em quem tenta cuidar do que não é tratável, não acha? Mas gosto que olhem para mim como se me pudessem humanizar. É triste, mas bonito de uma forma mórbida e negra que só os corvos como nós irão entender. Então, a pessoa que se propõe a tal, acaba por acreditar piamente que conseguiu chegar onde queria - ter um raio de um corvo enfiado numa gaiola aos folhos a decorar o hall de entrada. É interessante a expressão com que as pessoas ficam quando acreditam em algo com muita força, já reparou?
Mas então aí eu arranjo forma de fugir,  porque eu sempre fujo de quem me quer fazer ficar. É nesse momento, o de deixar para trás, que reside a convicção de que as gaiolas prendem mais quem as constrói do que aqueles que nelas se deixam entrar.

Ninguém pode culpar-me por isso, porque eu sou um corvo, e sou má, e nunca escondi isso de cada vez que entro, serena e ávida de cereais, dentro de uma gaiola aberta. Eu escolhi ser má, e quem me acolhe escolhe tentar mudar isso. No final, cada uma das partes arca com as consequências das escolhas que fez: simples assim. A culpa de uma desilusão, venha quem vier, é sempre de quem acredita, nunca de quem mente.

O que faço da vida é desfazê-la.
Soa-lhe familiar? Para quem são os fios senão para aqueles que se contentam em ficar atados? A gente como nós não quer nós: havemos de praticar a arte de desatar até que a morte não junte aquilo que separado sempre esteve e separado deve estar. 
Somos corvos, e gostamos. Devemos exibir a nossa natureza desapegada com orgulho, e quem dela se queixa então que saiba: a culpa... ah, Houston...a culpa é sempre de quem acha que pode consertar aquilo que já conheceu como estragado. 

A culpa é sempre de quem acredita. 
 GRACELINE.

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