sábado, 20 de agosto de 2016

10 | Houston, we have a problem

Houston,

Ninguém existe. 
(Este é talvez o pensamento mais confuso, mais doloroso e mais fundamental que tive em toda a minha não-existência. )

Não és tu que seguras - seguro de ti - o cigarro recém acendido na ponta dos dedos compridos e frios. Não és tu que balanças a perna num gesto absorto,  para cá e para lá,  para cá e para lá,  como se embalasses o caminho que te ainda falta cruzar mais tarde.  Não és tu que contemplas o dia com o cepticismo de um não-crente nas maravilhas da criação.  
Também não sou eu que te observo com a avidez de uma estudiosa das mentes bonitas. Nem tão pouco eu que bato nervosamente com os dedos na mesa do café, temendo o momento em que abres o livro sobre a mesa e te deixas levar por ele,  lá para esses sítios onde já não te alcanço.  

Deviam ser proibidos os sítios onde não te alcanço. Mas quanto mais o desejo, mais eles se multiplicam na minha frente; e mais tu, que não existes,  e o teu cigarro que existe mais do que tu, se afastam do café onde tu lês e fumas e eu te observo,  sem no entanto saírem do sítio em que estamos a não-existir. Um cigarro é sempre um cigarro,  e por isso existe,  mas tu não és sempre tu.  E já não és meu quando lês. Nem quando fumas. Nem quando partes, mesmo que fiques. De qualquer das formas nada disso interessa agora, porque enquanto te observo e te procuro, chego à triste conclusão que nem tu,  nem eu,  nem o homem atrás do balcão existimos.  
Existe sim uma série desequilibrada e desconexa de ideias: a ideia que tenho de ti, a fumar e a ler,  a ideia que tenho de mim,  a observar-te e a procurar-te, a ideia que tenho do homem,  que não é ideia nenhuma,  porque quando estás, mesmo não existindo e mesmo estando longe lá na terra dos cigarros e dos livros,  não há nunca ninguém atrás do balcão,  nem no mundo em geral.  
Há ainda a ideia que tu tens de mim, que está tão longe como tu e o teu cigarro,  a ideia que tens do homem,  e a ideia que ele tem de nós os dois. Ou de tu e eu, em separado,  como vossa excelência quiser.  

Houston, só existimos em ideias,  e isso é o mesmo que não ter existência. Por isso é que o amor é estúpido: porque não existe além de nós -  que lendo,  fumando,  observando,  procurando ou estando atrás do balcão também não existimos. Nunca o amor há de ser um jogo justo: é sempre uma negociação desigual entre ideias que mesmo triunfando não deixam de correr a tempos diferentes.  
Neste caso,  espero-te na meta.  
A ideia que tenho de ti marcou a página e fixou o olhar na ideia que tenho de mim.
- Amo-te. - Sussurrou a ideia que tens de ti para a ideia que tens de mim.  
- Tu não existes.  - Respondeu a ideia que gostava de ter de mim.  
E depois disto,  a ideia que o homem tem de mim foi pagar,  e saiu para continuar a celebrar a maravilha de não existir. 


Mary Jane. 
(É 1:31 da manhã,  não peçam que isto faça sentido) 

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